28 outubro, 2008

Senhas - Adriana Calcanhoto

Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competências
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Não, não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem

26 outubro, 2008

Diamantina


Mercedez entrou naquela cidade como se estivesse sonhando, quando as luzes clareavam as ruas desertas por onde, de dia, caminharam homens, mulheres e crianças, e sabendo que todo relato é um relato de viagem - uma prática do espaço. Não poderia imaginar que, nessas ruas - que mais pareciam abrigar os fantasmas das mentes em sonho, seria traçado o ensolarado dia seguinte. Nessa noite conheceu Índio e foi abrigar-se em Milho Verde, onde tambores rufavam e as cachoeiras eram verdes, onde lhe foi reapresentada a fé revestida de beleza. Tudo em Milho Verde era magnífico e dava medo - medo do imponderável, do inexplicável, do sublime, da sublime monotonia da natureza -, mas era supremo demais para a fragilidade e a insaciabilidade urbana de Mercedez que, cortando diamantes de pedra, retornou à cidade de Chica da Silva, a escrava que se fez rainha seduzindo o contratador dos diamantes, João Fernandes de Oliveira, e cuja fortuna foi descrita popularmente como maior do que a do rei de Portugal.
De volta à cidade, que se transformara em espaço de ficção, conheceu Karina, Linda, Laurinha, Narinha, Everton, Elton, Norton, Daniel: mineiros que de tão arretados mais pareciam baianos a viverem muito bem por entre os vales do Espinhaço.
De cada um que conhecia, carregava o que de melhor aparentavam e deixava o que de melhor dispunha e os dias iam se passando, dias que já não eram segundas ou sextas, na memória de Mercedez, que amava tudo ali e se dava às prosas mais empolgadas e contagiantes.
Conversou sobre mundos distantes, vidas paralelas e diabos a solta na rua no meio do redemoinho. Esteve, por lá, certa de que o Diabo não está em lugar algum, mas que habita dentro dos homens e deixou-se empossar...
Veio a conhecer, por insistência, Martírio Desventura, mais conhecido como “Pleiba”, dito douto que se faz parecer mais do que é com respostas prontas do tipo: “conheço também”, “posso te passar os contatos”. Foi assim que Mercedez encontrou o Diabo: vestido como anjo, solícito e dedicado como um servo.
Todavia, não tendo tempo a perder, de olho no espaço e sagaz como uma onça, a moça foi proteger-se em moita desconhecida, onde jamais podia imaginar o por vir. Fugindo do Diabo em forma de Pleiba, descobriu um manancial: o próprio Paraíso Perdido de Camões e Caminha, onde das vergonhas as índias não têm vergonha, onde escrever nada tem a ver com significar, mas com dimensionar, cartografar espaços e regiões, mesmo que sejam ainda por vir. Diamantina não passara de um sonho, de um rebanho de novidades e criatividade, um rebento.